Sumário: “Quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu a liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação”. (CPPM, Art. 310, Parág. Único)
Meritíssimo Juiz de Direito Militar:
Sob nossa análise, enquanto órgão constitucionalmente responsável pela persecução penal castrense no Estado, os autos da prisão em flagrante lavrada em desfavor do Sgt PM CARLOS ALBERTO DE SOUZA SANTOS, Mat. 30.215.533-3, lotado no GRAER/PMBA, acusado de suposto homicídio contra o investigador de polícia civil DOMINGOS RAMOS SOARES, lotado na Delegacia de Repressão a Furtos e Roubas da Polícia Civil deste Estado, fato ocorrido por volta das 01 hora da madrugada do dia 12 deste mês de setembro de 2011, no Vale dos Barris, em frente à sede da TRANSALVADOR, nesta capital.
Segundo leitura que lhe fiz, o graduado em questão, estando de serviço na base da GTRAN/TRANSALVADOR em razão de convênio entre a Assistência Militar da Prefeitura de Salvador e a TRANSALVADOR, tendo notado uma discussão entre pessoa desconhecida e um agente de trânsito, decidiu intervir em razão do referido cidadão se encontrar em visível estado de desequilíbrio emocional e estar exigindo reiteradamente o registro de uma ocorrência de trânsito, mesmo estando sendo informado que tal serviço funcionava no período de segunda a domingo, mas no horário entre sete e zero horas, tendo o cidadão, cuja identidade até então era desconhecida de todos, dirigindo-se ao agente RONALDO APARECIDO que o atendia, respondido que aquilo era “viadagem, e que eles não queriam trabalhar” (fls. 28).
O cidadão em questão era o investigador de Polícia Civil DOMINGOS RAMOS SOARES, aqui ofendido, e que tendo se envolvido num acidente de trânsito, dirigiu-se ao GTRAN porque orientado por policiais militares que compareceram ao local do acidente, e por isso, inconformado, exigia o registro da ocorrência, apesar das explicações que lhe eram dadas de que àquela hora era impossível atendê-lo, e que retornasse no início do expediente diário. Falam as testemunhas que irritado, além de dirigir palavras chulas contra o agente de trânsito, o policial civil tentou agredi-lo, oportunidade na qual viu-se o sargento SANTOS obrigado a interferir, e colocando as mãos no peito do inconformado cidadão, disse de forma veemente: “volte outro dia”.
Bastou esse gesto do graduado para que o ofendido o traduzisse como um insulto à sua pessoa, e segundo as testemunhas ouvidas ainda na Corregedoria da Polícia Civil para onde todos foram levados após os fatos, “ele se afastou de costas encarando o graduado, suspendeu a camisa, puxou a arma tipo pistola de cor escura, proferindo as seguintes palavras: “O QUE VOCÊ TEM, EU TAMBÉM TENHO”, tendo o graduado, ante o gesto do ofendido, igualmente retirado sua arma do coldre, mandando-o largar a arma (fls. 06, 09, 11, 24, 27, 29, 32, 35), oportunidade na qual ouviu-se um tiro, afirmando o graduado ter sido ele disparado pelo ofendido em sua direção e na dos agentes de trânsito, que correram, havendo o devido revide ao disparo do agente, iniciando-se uma troca de tiros entre ambos, tendo o agente sido atingido, vindo a óbito posteriormente no hospital para onde fora levado por uma guarnição PM e o próprio graduado. Segundo a testemunha MARIO JORGE BARROS LIMA, “a atitude adotada pelo Sgt BARROS foi proteger a si e os demais prepostos da Transalvador que estavam ali”(fls. 30).
Os autos não deixam dúvidas, então, sobre o que fato ocorreu, e por isso entendo que a conduta do graduado está resguardada pela excludente inscrita no Art. 42, Inc II c/c Art. 44 do Código Penal Militar e no Art. 25 do Código Penal comum, afirmando as normas processuais penais pertinentes que em casos que tais “quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato nas condições dos Art. 35, 38, observado o disposto no Art. 40, e dos artigos 39 e 42, do CPM, poderá conceder ao indivíduo liberdade provisória (...)”. A mesma redação se encontra no Art. 253 do CPPM e no Art. 310 do CPP, bem como no parágrafo único deste último, que acrescido pela Lei 6.416/1977, autoriza tal procedimento (liberdade provisória) quando dos autos não se extraia qualquer justificativa para a prisão preventiva do conduzido.
Eles, também, estão prenhes de evidências no sentido de que o ofendido deu causa a toda essa tragédia, lamentavelmente, porque a morte de qualquer pessoa nos constrange e nos diminui. Entretanto, o que se quer é Justiça, e a manutenção da prisão do graduado conduzido aqui e agora se delineia como um ato de “injustiça”, porque contrário às normas que disciplinam a custódia cautelar de alguém acusado da prática de um delito.
É que por mais que perscrutássemos estes autos, não conseguimos vislumbrar uma única hipótese, um único vestígio que justifique a manutenção da prisão do graduado, notadamente porque deles não se extrai, como exige o CPP no Art. 312, uma necessidade de garantia da ordem pública ou da ordem econômica, ou que ela esteja preservando a instrução criminal, assegurando a aplicação da lei penal, ou que atenda a exigências para manutenção das normas ou princípios de hierarquia e disciplina militares, porque ameaçados ou atingidos com sua liberdade, este último específico nos crimes militares porque somente previsto no CPPM (Art. 255). Não, nada disso, e os autos, muito pelo contrário, somente aponta na desnecessidade de sua manutenção.
Quanto à competência da Justiça Militar Estadual para se posicionar nestes autos de APFD, ela é indiscutível, porque advém da vontade exclusiva da norma processual penal castrense, notadamente no dia Art. 253, assim é porque o Auto de Prisão em Flagrante Delito não é IPM, podendo nele até se constituir se considerado suficiente para deflagração da ação penal, obviamente que depois de submetido a uma avaliação factual e jurídica pelo órgão dominus litis nesse sentido, porque somente este é senhor dessa avaliação, em face da extrema independência que goza na formação da opinio delicti nos crimes militares, e o que a lei manda seja remetido à Justiça comum quando se tratar de um crime doloso contra a vida de civil praticado por policial ou bombeiros militar, e em razão de suas funções institucionais, são os autos do INQUÉRITO POLICIAL MILITAR, e APFD não é inquérito, repito.
E é bom que se repita, também, que a Emenda Constitucional 45/2004 modificou na Justiça Castrense Estadual foi a competência para o julgamento de tais delitos, mantendo, portanto, a natureza de “crime militar” para qualquer delito praticado nas circunstâncias do Art 9º do CPM, e o homicídio, qualquer que seja ele, se praticado sob a égide de tal norma, continua sendo “crime militar”, fato já reconhecido pelo STF em ADIN intentada pela Associação de Delegados de Polícia.
A meu ver, por conseguinte, a polêmica sobre tal atribuição ou competência não se justifica. Na verdade, o que se vê é uma verdadeira “queda-de-braço” por ignorância da norma pertinente, seja a Constituição Federal, seja o Direito Castrense, e que via de regra envolve membros do Ministério Público e magistrados da Justiça Criminal comum, e que assumem atribuições e competências que ferem o princípio do “juiz natural”, especialmente porque sabido é que o “direito militar” surgiu de uma preocupação do legislador com a disciplina na caserna, e para mantê-la dentro de níveis necessários à preservação dos pilares que sustentam qualquer corporação militar, construiu um arcabouço jurídico único e especial para discipliná-los, depreendendo-se dessa realidade que a vontade da lei é que somente à Justiça Militar caiba julgar militares pela prática de “crimes militares”.
Nessa esteira de convencimento, portanto, vê-se que somente às autoridades de polícia judiciária militar cabe apurar condutas que configurem desvios de seus subordinados, e assim deve ser não somente por serem os detentores do “poder disciplinar na tropa”, como também porque o direito não se curva a casuísmos e nem a vontades outras senão as da lei, ou de outra qualquer de suas fontes, lembrando que as exceções por ele aceitas devem estar explícitas, a Carta Magna, embora tenha retirado da Justiça Militar Estadual a competência para julgar PM e BM acusados de crimes dolosos contra a vida de civil, manteve a natureza de “crime militar” em tais delitos, fato inquestionável.
Tanto isso é verdade que o legislador ordinário, regulamentando esse dispositivo constitucional, determinou que nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhe os autos do IPM à Justiça comum, concluindo-se daí, e sem muito esforço, porque partindo-se do princípio de que inexiste norma jurídica sem objetivo, que se é da própria PM a atribuição de apurar “crimes militares”, por consequência do juiz de Direito Militar será a competência para primeiro lançar-lhes sua vontade, ou seja, a vontade da lei, especialmente porque entre nós ainda vige o princípio do “curia novit”, e se assim é, a avaliação preliminar de flagrantes é exclusiva do juiz de Direito Militar da Justiça Militar Estadual, e é porque assim quer a norma do Art. 253 do CPPM, e se ela não excepciona, não será seu intérprete e operador quem o fará. Destarte, dirimida está a dúvida sobre a competência da Justiça Militar Estadual para, nestes autos de APFD, lançar seu posicionamento sobre sua judicialidade e eficiência, como exige o moderno direito processual penal pátrio, porque o juiz natural nos “crimes militares”.
Outra não pode ser a conclusão, considerando que interpretar lei nada mais é do que determinar o alcance de suas palavras, e a interpretação da lei penal militar não se furta a esse princípio clássico, apesar do seu ius singulare, e retornando ao presente auto de prisão em flagrante, até onde consegui enxergar, repito que entendo ter sido o ato praticado pelo graduado em questão um legítimo ato de defesa, e assim vejo porque o panorama probatório do APFD não indica outra razão para a reação por ele esboçada.
Ademais, e esse fato também se retira dos autos, todas as testemunhas ouvidas, inclusive na Corregedoria da Polícia Civil (fls. 22 a 33) afirmam categoricamente que o agente policial ofendido apresentava visíveis sintomas de embriaguês alcoólica, e antes do fato lamentável que resultou na sua morte, tinha se envolvido num incidente de trânsito no qual até a arma puxara para o motorista de um ônibus, fato ocorrido no Comércio e registrado em ocorrência lamentavelmente não constante destes autos, mas que certamente constará dos autos do IPM, cuja realização já fora iniciada na Corregedoria da PM.
Por fim, hei de registrar que o graduado é tecnicamente primário, sem antecedentes criminais, profissional com excelente conduta pessoal e funcional, com profissão e ocupação definida, além de possuir endereço fixo, e assim sendo, vejo que sua liberdade não trará qualquer sobressalto à sociedade e muito menos qualquer tipo de transtorno ao processo criminal, caso seja denunciado, o que ainda pode não ocorrer por falta de justa causa.
Mas esse é um problema para avaliação do órgão ministerial que tiver atribuições para tal, cabendo-me, exclusivamente um posicionamento sobre estes autos de Prisão em Flagrante Delito, e ante o que vi e o que consegui dele extrair, outro posicionamento não poderia adotar, senão ser favorável à concessão da liberdade provisória ao 1º Sgt PM CARLOS ALBERTO DE SOUZA SANTOS, por vê-la como questão de Justiça, sendo este meu parecer, sub censura, e que se aguarde a remessa do IPM já instaurado para que nele seja lançado nosso opinativo sobre o destino justo a lhe ser dado, e ao qual deverá ser juntado este APFD.
Para concluir, nota-se que nos autos fala-se que o graduado “retirou a pistola da cintura do ofendido quando ele estava caído ao lado da porta do carona do seu carro”. Obviamente que além de se tratar de procedimento normal e de cautela, há também registro de que ele, ofendido, depois de trocar tiros com o graduado, afastou-se tentando entrar no carro, e para isso recolocou a arma na cintura.
Testemunha visual atesta essa conduta do ofendido (fls. 27), cabendo, ainda, alertar que o Auto de Exibição e apreensão de fls. 22, lavrado na Corregedoria da Polícia Civil, atesta que as armas de ambos, graduado e ofendido, e que foram entregues à autoridade policial ali presente, o carregador da primeira estava com 07 (sete) munições intactas e o da segunda com 08 (oito) munições também intactas, o que traduz que em se tratando de pistolas semi-automáticas, ambas com carregadores com capacidade para 12 (doze) cartuchos, estes vão sendo esvaziados à medida que tiros são efetuados, e que se ambos estavam municiados com capacidade máxima, o graduado, obviamente, efetuou 05 (cinco) tiros, enquanto o ofendido efetuou 04 (quatro), sendo de bom alvitre anotar, ainda, que o registro de arma encontrado em poder do ofendido não se referia à arma que fora apreendida (fls. 22).
Cidade do Salvador(BA), às 11h07 de 14 de setembro de 2011.
Luiz Augusto de Santana
1º Promotor de Justiça Militar Estadual